sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Os filhos do digital

 “Tão inteligente! Tão pequenino e já sabe ir ao Youtube sozinho!”

“Criança esperta! Domina o telemóvel melhor que qualquer um de nós!”


Quem nunca ouviu ou disse algo do género? Quem nunca ficou boquiaberto com a destreza com que os mais jovens manuseiam as novas tecnologias? 


Imagem: Unsplash


Dê um passo em frente se nunca passou para a mão de um miúdo um telemóvel, ou tablet, para o entreter num momento de tédio, para pôr fim a uma birra, para que se calasse um pouco, para conseguir fazer algo sem ser incomodado? As hipóteses são imensas e, com certeza, haverá um elevado número de pessoas a sair do lugar onde está. Com medo, com culpa ou sem qualquer sentimento ou emoção, pois este é um gesto já irreflectido,  imediato e normalizado perante uma “situação de crise”.


É tudo muito interessante até ao momento em que, já desesperados, os pais não sabem o que fazer, pois os filhos estão viciados em redes sociais, em jogos, em amigos que não conhecem. Saem de casa, de manhã, já com os olhos fixos num qualquer ecrã portátil; na escola, caso não seja proibido, passam aulas e intervalos agarrados ao whatsapp, ao TikTok e outras aplicações onde o mais provável é estarem a trocar mensagens com o colega que está sentado mesmo ao lado - não, não estão a contar segredos, são conversas banais nas quais poderiam usar um sistema muito mais desenvolvido: o aparelho fonador do qual somos naturalmente dotados; ao final do dia, depois de aulas, explicações e mil e uma atividades extracurriculares, chegam a casa e enfiam-se no quarto, onde continuam com os dedos e os olhos esgazeados pelos aparelhos que têm à mão.


E assim vão crescendo.


Os fabricantes de jogos para as mais diversas consolas existentes no mercado alegam que os seus produtos fazem desenvolver capacidades e competências que, posteriormente, são facilmente concretizadas na vida real. Há, no entanto, estudos que provam o contrário. Em jogos de combate ou de velocidade, em que são necessárias destreza, rapidez de raciocínio e acção, tudo isso não passa de ficção. Nada disso é aplicável em circunstâncias reais. Saber jogar FIFA - um dos jogos mais populares entre os amantes de futebol - não significa que se saiba chutar uma bola. Super Mário, GTA, Clash of Clans Minecraft, Simms... Há tantos outros exemplos


São horas, dias, meses, anos de ecrã. Tempo que se perde, em que pouco se aprende e com consequências devastadoras a todos os níveis: cognitivo, emocional, social e físico. Tudo acontece demasiado rápido, não há tempo de espera, logo não há tédio, logo perde-se a oportunidade de descobrir o que fazer com o tempo que se tem entre mãos.


Há miúdos que têm os melhores amigos num computador sabe-se lá onde, com todos os riscos que isso possa acarretar, porém se se cruzarem na mesma sala são incapazes de trocar uma palavra ou até um olhar. Há outros tantos cuja caligrafia é imperceptível, porque não desenvolvem a motricidade fina. Há jovens incapazes de resolver uma soma ou uma multiplicação simples, porque a calculadora fá-lo por eles. E, por incrível que pareça, uma boa parte desta geração não sabe e não consegue fazer uma pesquisa no Google!


Responsáveis? Nós! Nós que inventámos os computadores, as consolas e os telefones espertos. Nós, que lhes colocamos nas mãos o primeiro ecrã antes de completarem um ano de idade. Nós, que cedemos a chantagens baratas em troca de um pouco de sossego. Nós, que caímos na conversa do bandido, acreditando que o último modelo da marca fará dos nossos pequenos uns génios. Nós, que compensamos a nossa ausência com tecnologia.


Acredito que nem tudo seja mau, mas para que não se torne pior, teremos de ser nós, adultos, a fazer alguma coisa. Adiar os ecrãs, criar outros estímulos e, consequentemente, adoptar hábitos diferentes. Fomentar tempo de qualidade com os mais novos e criar-lhes memórias - como dizia Johann Paul Richter “a memória é o único paraíso do qual não podemos ser expulsos”



NOTA: Este artigo foi originalmente publicado, na edição 52 da revista Justiça com A

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